domingo, 7 de novembro de 2010

Crônica para a velha Ipu já morta

CRÔNICA PARA A VELHA IPU JÁ MORTA







A opulência que nossa cidade veio a experimentar nas quatro primeiras décadas do último século ainda se evidencia na imponência da nossa Igreja Matriz, na elegância dos poucos prédios históricos que ainda não foram demolidos, como a Pharmácia Iracema e a antiga farmácia do Sr. Chagas Paz. Os prédios, assim como os homens, têm alma e memória; se nos detivermos diante dos casarões de Oswaldo Araújo, do “Solar dos Soares”, dos velhos casarões abandonados de ontem e de hoje, e daqueles pertencentes a famílias tradicionais, ou mesmo na nossa magistral e abandonada estação ferroviária, podemos mesmo jurar que eles lamentam; como que a pedir “pelo amor de Deus” que nós, os ipuenses de hoje, não os deixem perecer para sempre no abismo sem fundo do esquecimento eterno. Ali, outrora, residiram “gigantes”, tais a magnificência da arquitetura, a imponência das sacadas, o gigantismo das portas, a elevação singular dos tetos. Das suas paredes, parece que podemos mesmo ouvir as vozes de seus antigos moradores, a bradar para seus criados, num calor de um dia qualquer de um fim de tarde perdido para todo o sempre no abismo sem fundo do tempo. Na argamassa que une os tijolos, feitos com barro cru, podemos notar as marcas dos dedos de seus construtores, antigos serviçais a depender da benevolência e da boa vontade de seus patrões. Ao adentrar a residência, velhas fotografias de senhores sisudos nos observam com olhos vivos e enigmáticos, como velhos fantasmas de homens mortos e esquecidos há séculos e séculos. Seus olhos estão vivos a nos desafiar de dentro da noite dos tempos. As almas dos homens e mulheres que outrora ali viveram ainda se fazem presentes em suas casas, como que a nos vigiar os passos, de forma surreal e fantasmagórica, censurando-nos pela visita sem pedir licença; eles jamais deixaram suas residências, seus pertences e seus entes queridos; nós, as pessoas de hoje, é que somos intrusos ali, estranhos a violar a intimidade daqueles recintos sagrados. Ali, sempre se escuta, a meia-noite, barulhos estranhos de redes rangendo sozinhas, de panelas e pratos num tilintar de alvoroço, de passos apressados nos corredores, de carícias e afagos trocados entre assombrações e almas penadas de antigos amantes já mortos, nas alcovas escuras a pagarem seus pecados com a penitencia de assombrarem para sempre as pessoas vivas. Um outro dia, quando a gata de um vizinho entro no cio, muitos juraram, a meia-noite, terem ouvido um choro espectral de alma penada, de Cão do Inferno, de anjo sem luz, de encruzilhada assombrada. Poucos são os que têm coragem de encarar aqueles olhos - vivos e ao mesmo tempo mortos – da fotografia centenária, e ali pernoitarem sem temerem os tormentos daquela visão. Velhos avós há muito tempo atrás enterrados se erguem vigilantes à noite em seus casarões centenários, num sussurro enlouquecedor, de sepulturas seculares sendo abertas, para reclamar uma existência e uma recordação por nós mesmos há muito tempo negligenciadas.
Em seus casarões em ruínas, em seus prédios históricos abandonados, em suas ruas antigas e esquecidas, a velha Ipu chora um choro surdo e mudo das cidades mortas, como um cemitério de vivos; quando um uivo de um cão louco faz lembrar as almas penadas que ali residem; num choro fantasmagórico que, sufocado pelo barulho ensurdecedor dos automóveis e motocicletas que correm obstinadamente pelas ruas de hoje, silenciando mesmo o choro dos homens e mulheres que viveram por aquelas ruas, que amaram por aquelas alcovas, que construíram aquelas casas, que sentaram naquelas praças; e que continuam eternamente a sentar e a andar e a amar pela velha cidade morta e sepultada debaixo da cidade viva, pulsante e barulhenta. A cidade velha, quase que caída para todo o sempre em um esquecimento tão profundo que, para o futuro, ela nunca existiu, deixa mesmo correr um rio de pranto que à noite assombra os namorados, os noctívagos, os ladrões e os vagabundos, como um gemido de uma alma penada e um vento frio que vem do cemitério da cidade e que faz gelar o sangue dos mais valentes e supersticiosos. Esta é a pior das mortes; a morte total e definitiva; uma morte completa e irreversível; a morte de todos os nossos avós; e dos avós de nossos avós. Todos de uma só vez vêm juntos gritar a meia-noite, em pânico aos ouvidos insensíveis dos homens e mulheres vivos, como uma legião de anjos e de demônios na eterna agonia da batalha travada entre os santos e os diabos pelas almas dos vivos e dos mortos. Mas as pessoas de hoje não ouvem, não sentem; não falam; como se estes é que jazessem inertes e sem vida.
(reelaborado)

Raimundo Arcanjo.

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