domingo, 7 de novembro de 2010

Rocha Aguiar

O “REINADO” E A DECADÊNCIA DE ROCHA AGUIAR

            Antes de discutirmos aqui a privatização do mercado público, gostaria de contar uma história verdadeira, acontecida há cerca de 30 anos atrás, na época da transição do mandado de Milton Pereira (1978-1982) para Flávio Mororó (1982-1986). Aquelas eleições foram particularmente violentas, com muita disputa e mesmo com atentados à bomba nas residências de alguns eleitores “inimigos do regime”; a velha facção liderada por Rocha Aguiar, que havia monopolizado o poder na cidade por três mandatos (de 1967 a 1976, mais ou menos), e havia perdido desde 1976-78 para a facção dos Pereira veio com tudo para tentar retomar a máquina prefeitural, mas os Pereira agarraram-se as “tetas do poder” e conseguiram manter Rocha longe da prefeitura.  
            Meu pai, embora trabalhasse fazendo dentadura a troco de votos para as duas facções, nutria sinceras simpatias por Rocha e seus aliados; desde que nós havíamos migrado das brenhas da Ramada, em Guaraciaba, para o Ipu, Rocha Aguiar, velho médico oriundo da oligarquia camocinense e que “caiu de pára-quedas” no Ipu nos anos 1960, havia dado a mão a minha mãe com remédios, consultas gratuitas e muito assistencialismo barato (foi desta forma que o esperto “Dotô Rocha” fez seu nome em nossa cidade).

Rocha Aguiar: a ascensão de um “estrangeiro”.

            Com a falência da Estrada de Ferro, as elites do Ipu entraram em colapso nos anos sessenta; a ferrovia foi sucatada, e a classe dos comerciantes, que haviam feito fortuna explorando algodão e a mão-de-obra dos pobres moradores de suas terras veio a conhecer “o fundo do poço”; foi nesta brecha de “falência das famílias tradicionais” que o Ipu veio a ser conquistado por Rocha Aguiar, um “estrangeiro” vindo de tão longe. Sua vitória se deu, se não me engano, em 1967, quando ele tomou o poder das mãos dos Pereira, velho ramo das vetustas oligarquias centenárias que secularmente sugaram o “sangue” de nossa prefeitura.
            O primeiro prefeito eleito do Ipu foi Félix de Sousa Martins (avô de Simão Martins), eleito em 1926 (antes deste, os prefeitos – também chamados de intendentes – não eram eleitos, eram nomeados pelo governador, ou escolhidos pelos vereadores entre eles mesmos, sem levar em conta a opinião pública). Depois de Felix Martins tivemos os seguintes prefeitos: Manoel Victor de Mesquita, Joaquim de Oliveira Lima, Abdoral Timbó, “Chico Pinto”, Humberto Carvalho Aragão, Raimundo Rodrigues Martins, Abdias Martins (pai de Simão Martins), José Lourenço de Araújo Corrêa, José Oscar Coelho, Zeferino de Castro e Antonio (pai de Milton Pereira). Com estas figuras o poder era hereditário, passava de pai para filho, e poucas famílias, podemos dizer, eram “donas do Ipu”; mas com Rocha aconteceu algo diferente: Rocha era um “estrangeiro”, um “aventureiro” vindo de terra estranha, não tinha parentes no Ipu, e por aqui se instalou e fez seu nome atendendo gente de graça, distribuindo leite em pó da LBA “de graça” e promovendo assistencialismo e caridade a troco de voto. “Esse Doutor é um Santo homem!”, dizia uma velha senhora, que havia recebido 5 pacotes de leite das mãos do “Doto Rocha” em plena campanha prefeitural dos anos sessenta.
            Falidas, nossas elites parasitárias não puderam fazer frente à magnífica máquina de assistencialismo montado pelo “Bode Loiro” (apelido que mais tarde será dado ao Doutor Rocha); e Rocha Aguiar dominou o Ipu de 1967 a 1976, prolongando-se através de seus aliados e familiares, com os prefeitos-fantoches Antonieta Aguiar (sua esposa) e Antonio Ximenes Veras (seu “testa-de-ferro”). A máquina prefeitural virou um feudo privado da família Aguiar. Truculento, assistencialista e prepotente, querendo “ir à forras” com as elites, Rocha era um candidato “do povão”, e sempre desprezou as “famílias tradicionais” do Ipu. Num ato de provocação à estas elites, o Bode Louro, assim que assumiu o poder em 1967, mandou queimar toda a documentação da velha Câmara do Ipu (com papéis do tempo em que a sede era da Vila era Campo Grande, em 1791, até aquele ano). Atônitas, as elites “sanguessugas” assistiram a este crime sem nada poderem fazer (este foi o maior crime já praticado contra a nossa memória! Denunciá-lo é garantir que ele nunca mais se repita!).
            Uma outra obra digna de registro de Rocha foi a criação, ao final dos anos 1970, do prédio da Escola Murilo Aguiar graças a verba conseguida por seu primo, o deputado Murilo Aguiar, de Camocim. O prédio destinou-se a abrigar uma escola primária, mas nos anos 1980, tornou-se um anexo de uma escola de ensino médio localizado próximo a fortaleza (não sei exatamente onde). Desde o início a escola Murilo Aguiar foi pensa para “concorrer” com o Ginásio e com o Patronato (lugares dominados pelos adversários de Rocha); ao construir o Murilo, a facção pretendia roubar das mãos das elites locais a primazia de fornecer educação aos ipuenses em geral. A escola funcionava tão precariamente que diariamente seus parcos alunos eram “corridos” do Auton Aragão: “Vocês tão aqui de favor, seus bestas!”, dizia a diretora da época. Muitos jovens só conseguiram ter o “segundo grau” graças ao Murilo; vinha gente até mesmo de Ipueiras e de Guaraciaba para estudar ali (quem não podia pagar as mensalidades exorbitantes do Patronato, ou do Ginásio, e não tinha “padrinho” que lhe desse “bolsa”, tinha no Murilo a única opção única para ter acesso ao ensino médio).

Monsenhor Moraes: o maior inimigo de Rocha.

            Sem força para enfrentar a monstruosa manipulação de Rocha Aguiar, as elites corruptas “fizeram a cabeça” do velho Monsenhor Moraes para encabeçar a chapa contra o “intruso” “Bode Louro”. Do alto de sua tribuna, transformada em palanque, o velho Moraes com sua vós trovejante, apelidado agora de “Zorro” (por causa de sua batina preta, que parecia com a capa deste herói mexicano) bradava contra o “governo opressor” do oligarca estrangeiro, e apelava ao povo em nome da “decência” e da “dignidade” para elegerem novamente alguém “da cidade” para nos governar; “quem votar no Rocha vai ‘pretim’ pro inferno!”, dizia um eleitor do padre, entusiasmado. Moraes não esperava ser atacado tão virulentamente por seus opositores; o velho servo da Igreja amargou estrondosa derrota e ainda viu sua vida privada ser rasgada aos “quatro - ventos” e ser transformada em “bandeira política” pela raposa de Camocim (acusaram-no de mancebia nos palanques do Bode louro).  
            Doravante as campanhas políticas tomaram ares de batalhas campais; o folclorista Florival Vale, acusado de participar da depredação do “Comitê” de Rocha, por pouco escapou da morte, quando o Bode, com rifre na mão, procurou Florival para matá-lo em pleno mercado público num dia de feira; avisado por amigos, pôde o folclorista escapar por pouco da morte certa. Meses depois (ou dias, não sei ao certo), uma banca de jornal que pertencia ao mesmo foi destruída (a polícia concluiu que foi “coisa de desocupado, e de gente desconhecida, e que nada se podia fazer!”); a casa de Elias M. foi atacada com uma banana de dinamite (parte do teto desabou); uma malta de “babões” capturou uma jumenta, vestiu-a com roupas de chita, chapéu de palha, brincos, batom e colocou nela um cartaz escrito “Dona Êtinha” (apelido da esposa de Rocha); solta com um rabo de latas peso a sua calda, o animal correu em desespero pelas ruas movimentadas da feira do Ipu num sábado festivo (era a humilhação pública da prefeita e esposa do Bode louro). O mundo veio a baixo; como estava no cio, sua correria foi acompanhada pelo tropel de dois ou três machos excitados, com suas genitálias pretas e imensas à mostra (desde então, perder a política no Ipu é “levar fumo”; o “fumo” referido não é o “fumo de rolo”, que se masca, mas a genitália hedionda de um jegue). Rocha saiu pela cidade “cuspindo fogo pelas ventas” e com o seu “barabelum” nas mãos, caçava os responsáveis apontando a arma a qualquer opositor que ele encontrasse. Mas não adiantou, o Bode foi derrotado por Antonio Milton Pereira ao final dos anos 1970; e o poder volta as mãos gananciosas da velha e carcomida facção dos Pereira e seus pupilos, os Mororós.   
            A facção, aliada a Igreja, eram os grandes perdedores com a criação do Murilo Aguiar; e juntas, uniram forças para “fechar logo aquela merda”; “-Quem quiser estudar que nos procure no Patronato ou no Ginásio”, diziam. Mas a pressão encima deles foi tão grande que nem Milton nem Flávio tiveram forças para desativar o Murilo Aguiar. Mas as ameaças nunca pararam de existir.


A decadência do “Bode Louro”.

Com a decadência de Rocha, ficamos encima do muro, e recebemos de Flávio propostas de trabalho (meu pai fez quase cinco mil dentaduras para seus eleitores, e recebeu como pagamento uma moto CG 125 semi-nova, uma das primeiras que o Ipu chegou a ver, e ela valeu a meu irmão “Dotô” a fama de playboy e maior “rabo-e-burro” da cidade); meu irmão mais velho (“Tião Bacamarte”) havia recebido como prêmio por nossa “lealdade” um ponto no mercado público, e todos nós vivíamos com o rabo preso, sem poder “falar besteira”, por conta desta “dívida” com os politicos. Os pontos do mercado eram na realidade loteados pelos prefeitos (verdadeiros patifes) a troco de votos na véspera das eleições, e as famílias interessadas recebiam um meio “honesto” (e precário) de ganhar a vida e viam seus rivais, da outra facção, serem corridos de lá com o “rabo entre as pernas”. Sem dignidade, sem liberdade, sem voz altiva, sem independência, estes comerciantes saiam de dentro das muitas famílias influentes da localidade, e seus pontos comerciais eram “comprados” em troca do voto de todos os seus parentes. Ter ponto no mercado significava ascender socialmente, era não pagar aluguel, não pagar água, não pagar luz, não se preocupar com os fiscais da saúde etc.; era só puxar o saco do “homem” e torcer fervorosamente nas eleições seguintes. Se perdesse, podiam se preparar para serem corridos como cães do mercado!
            Logo depois da vitória de Flávio (que era amigo de meu pai, apesar das diferenças “ideológicas”) este foi pressionado por seus sicários para expulsar do mercado o “impostor” e “traidor” Tião Bacamarte (onde já se viu, deixar de dar ao gato, que é de casa, e dá ao rato!). Foi-me doloroso ver o ar de deboche de nossos visinhos gritando “olha o fumo, João Cidade!”, e ver meu irmão juntar as poucas mercadorias de seu comercio numa carroceria e Rural: “ele tem que sair mermo”. Para completar a “desforra”, uma turma de arruaceiros do outro lado (logicamente que com a conivência, mas sem a ordem expressa de seus patrões), montada num jipe verde-escuro e portando as bandeiras coloridas do partido dos Pereira-Mororó vitoriosos veio até a nossa residência e atirou uma dinamite na sala de entrada. Minha mãe, grávida de quatro meses, teve um susto tão grande que sofreu aborto imediato. Eu e mais três de meus irmão e alguns vizinhos (todas crianças de uns 5 anos) corríamos como baratas tontas, para nos esconder da ação daqueles vândalos covardes; mas os terroristas não levaram nada disso em consideração; de cima da tampa do carro, com olhos fanaticamente arregalados, o terrorista gritou a plenos pulmões: “-Toma fie duma égua! Vai fazer dentadura no inferno!”
            Minha mãe, esvaindo-se em sangue, foi socorrida as pressas no hospital do Doutor Tomaz, meu irmão natimorto foi enterrado sem nome no cemitério; e o delegado de polícia, quando fomos prestar queixa, disse-nos: “-Vão cuidar da vida de vocês, seus bestas!”.     
            Por ocasião das eleições, estas agressões ocorriam de ambas as partes; e a violência praticada contra pessoas comuns era tolerada pelo regime militar como “coisa natural” e fazendo parte do “jogo democrático”. Lembro-me de umas musiquinhas cantaroladas nas feiras:

Quebraram a banca do Florival!
Arrebentaram a banca do Florical!” ;

Ou ainda esta:  

“Mas como é que pode, me diga sujeito
 O Diabo do bode ser nosso prefeito!

Ou ainda esta estrofe, de Florival Vale:

Chaga Pedo das Fulores
Deus premita que tu rode
(Pois só sabe fazer mesmo)
É puxar o saco do Bode”.

            Um outro crime nunca devidamente esclarecido deste período foi o assassinato do vereador Gerardo Camelo Madeira por pistoleiros, quando este trabalhava como professor no Colégio Ipuense, lá pelo ano de 1983 (Gerado foi alvejado por três tiros e seus assassinos nunca foram capturados, e a sua morte nunca devidamente esclarecida). Os atentados à bomba nas residências, as agressões físicas, as ameaças e as intimidações refletiam em menor escala o terror que o país inteiro vivia: estávamos na época da Ditadura Militar, e a polícia e o judiciário nada faziam para promover a dignidade e a cidadania de nossa gente. Simplesmente “não era crime” atirar bombas nas casas dos adversários derrotados, “-pois vocês bem que mereceram, pra aprender a votar,”; ou “olha o fumo!”. Muitos valentões e briguentos se fossem do lado do prefeito não eram “importunados” pela policia ou pelo delegado, e se podia dar tiros e agredir as pessoas sem nada temerem, pois “esse é dos nossos”, dizia o delegado. Ganharam fama anos depois alguns “valentões” que agiam impunemente, como: P. P. e M. M.; verdadeiros flagelos do Ipu dos anos 1980; homens temidos por sua truculência; não iam presos; se quisessem podiam obrigar as pessoas a beber cachaça “a força”, e se o sujeito reagisse a família inteira do agressor caia encima, como uma “caxota de abelhas”. “É gente de família”, diziam os policiais, “e com gente de família é melhor não se importar”. E se o policial ou o delegado se metesse a besta o prefeito, com ajuda do governador, transferi-lo-ia lá para onde “Judas perdeu as botas”.


Raimundo Arcanjo; do exílio em Uruoca.
arcanjoberne@bol.com.br







A PRIVATIZAÇÃO DO MERCADO PÚBLICO

            Tal como está o mercado público é uma excrescência, uma aberração do filhotismo, um tiranossauro estúpido a serviço da prepotência e do coronelismo. Ele já está privatizado, pois não é democraticamente ofertado ao povo em geral o acesso a seus quartos; serve como moeda-pobre no balcão das negociações politiqueiras; e é uma arma nas mãos dos políticos para manipular e dominar a vida de nossa população. O senhor Sávio Pontes, nosso atual prefeito, faz um grande favor ao Ipu se o vender seja por que preço for; pois assim acabamos logo com este valhacouto do clientelismo, essa excrescência do passado coronelístico. A desculpa de que o mercado não pode ser vendido por ser um “prédio histórico” não cola, pois o prédio já foi virado ao avesso diversas vezes desde que foi erguido no século XIX, e nada de original, nem mesmo o alicerce, está como era antes. “Mas se o mercado for privatizado muitas pessoas vão ficar desempregadas, sem ter como viver”, dizem-me alguns; ora, estas pessoas que procurem se virar de outra forma, pois o mercado se fosse de todos, e se vivêssemos numa democracia saudável, elas é não deveriam estar ali, pois estão gozando de um privilégio que não se estende para a maioria dos cidadãos (se eles têm o direito de estar ali, eu, você, e qualquer cidadão também o têm). Eu não posso, em nome da preservação do ganha-pão de meia dúzia de pessoas, defender a não-privatização do mercado e com isso colaborar para manter viva uma excrescência das velhas épocas do coronelismo ipuense. E o que dizer da conversa de que se vendido, o prefeito vai se apropriar do capital daí auferido? Outro absurdo, pois não se pode deixar de tomar uma atitude benéfica ao municipio em nome da “preservação de nosso patrimônio”, ou por que se supõe que tal autoridade não agiria com a devida lisura; o ministério público, a câmara de vereadores (rá-rá-rá! Tô brincando, pois, aqueles velhacos do legislativo! Não podemos contar com eles para nada!) e o TCM existem aí para fiscalizarem ao executivo.
            Quantas famílias, a pretexto de manterem seus pontos no mercado, não silenciam diante da incompetência e da estupidez de prefeitos corruptos e truculentos? Quantos comerciantes, por medo de perder seu ganha-pão não se vêem forçados a acompanhar a determinada facção deletéria? E a “derrama” que assistimos quando determinado prefeito não consegue eleger seu sucessor, e os “seus” são despejados do mercado como cães leprosos! Existiria coisa mais deprimente; mais revoltante; mais retrógrada; e mais absurda acontecendo nas nossas eleições?   
            Determinadas tradições tem que morrer mesmo, e a gente tem é que comemorar a sua morte; e dentre estas tradições malditas está o apadrinhamento político; e o loteamento dos pontos comerciais do mercado. Se me fosse dado voz, eu gritaria, a plenos pulmões, nos microfones, nos alto-falantes, nos carros de som: “morte ao mercado público, curral de manipulação de nossos leitores; valhacouto do coronelismo e do clientelismo”.



Raimundo Arcanjo; do exílio em Uruoca.
Intimidações para: arcanjoberne@bol.com.br

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